CRF-GO acompanha  reunião dos  participantes do Grupo GAM com a farmacêutica Sâmia CRF-GO acompanha reunião dos participantes do Grupo GAM com a farmacêutica Sâmia

Para além dos medicamentos!

Farmacêuticas fazem a diferença no cuidado da saúde mental de jovens e crianças com a estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM)

*No Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPS Infantil Alegria) , de Aparecida de Goiânia, profissionais de saúde, incluindo farmacêuticas, desempenham um papel crucial no cuidado da saúde mental de jovens e crianças. A equipe de Comunicação do CRF-GO visitou o CAPS e acompanhou de perto o trabalho das farmacêuticas. Para preservar a privacidade dos pacientes e seus familiares, os nomes foram alterados nesta reportagem.


 Ambiente interno do CAPS de Aparecida de Goiânia  Sônia da Silva Oliveira Cândido (farmacêutica), Eurides Santos Pinho (enfermeira) e Sâmia Cristina Borges Aragão (farmacêutica)  Capa do Guia da GAM  Mayara da Costa (CRF-GO), Sônia Cândido (CAPS), Joice Prado (CRF-GO), Sâmia Aragão (CAPS) e Eurides Pinho (CAPS) no CAPS Infantil Alegria

Era uma manhã de quinta-feira, por volta das 9 horas, em Goiânia, onde o sol brilhava no céu azul repleto de nuvens. Chegamos ao Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPS Infantil Alegria), de Aparecida de Goiânia, situado no Jardim Bela Vista, em Aparecida de Goiânia. Logo ao entrar, deparamo-nos com muitas crianças acompanhadas por seus pais e uma frase marcante, elaborada em cartolinas azuis, estampada em uma das paredes sob um tecido branco com desenhos: "Valorize as capacidades e respeite os limites!", uma clara referência ao Transtorno do Espectro Autista (TEA).

O CAPS tem como objetivo principal acolher e acompanhar crianças e adolescentes em sofrimento psíquico. Destina-se a faixas etárias de 0 a 17 anos e 11 meses, englobando casos de sofrimento psíquico grave e persistente. Dentre as condições atendidas estão o Transtorno do Espectro Autista (TEA), as psicoses da infância, transtornos de humor (como depressão e transtorno bipolar), transtornos fóbicos e ansiosos graves, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Ao chegarmos no CAPS Infantil Alegria, fomos recebidas pela farmacêutica Sâmia Cristina Borges Aragão, uma profissional com sete anos de experiência em CAPS, sendo seis deles no CAPS Álcool e Drogas Infanto-juvenil e há um ano no CAPS Infantil Alegria, e que trabalha com a Gestão Autônoma da Medicação (GAM). "Nosso fluxo aqui é sempre intenso para acolhimentos, grupos, consultas e demais atendimentos. Hoje faremos o grupo GAM com familiares,” disse Sâmia, recebendo-nos com um sorriso no rosto. Gentilmente, ela nos guiou pelos corredores até uma ampla sala de reuniões com os pais dos jovens. Lá, nos apresentou à Sônia da Silva Oliveira Cândido, também farmacêutica do CAPS há dois anos e à Eurides Santos Pinho, coordenadora da saúde mental do município de Aparecida de Goiânia. "Trabalhamos em equipe multidisciplinar para garantir cuidados integrais a cada paciente. Temos farmacêuticos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais. Estamos aqui para acolher, ensinar e apoiar os pacientes e suas famílias," comentou a farmacêutica Sônia.

Já Eurides Pinho trabalha na saúde mental de Aparecida de Goiânia há 11 anos. Inicialmente trabalhou como enfermeira no CAPS III Bem me quer (adulto) por cinco anos, depois como enfermeira no CAPS Infantil Alegria por quatro anos, como coordenadora no mesmo CAPS por dois anos e atualmente atua na coordenação de saúde mental do município desde agosto de 2023. Em saúde mental a experiência de Eurides totaliza 13 anos.

À medida que o tempo passava, os pais chegavam e ocupavam os assentos dispostos na sala. Um deles estava acompanhado do filho adolescente Jonas. A reunião, realizada no CAPS, oferecia um ambiente acolhedor, com cadeiras em círculo e uma mesa ao centro. Foram servidos lanches como suco, café e pão de queijo. A farmacêutica Sâmia deu as boas-vindas e convidou os pais a se acomodarem.

À primeira vista, eles parecem colegas que ainda estão se conhecendo, mas possuem vivências em comum e se reúnem para uma conversa casual. No entanto, há uma timidez no ar, um cuidado nas palavras, que revela a profundidade do que está acontecendo. "Realizar o diagnóstico de transtornos psíquicos não é uma tarefa simples, daí a importância do cuidado e a observação compartilhada da equipe multiprofissional. No entanto, uma vez diagnosticado, é crucial entender a natureza do transtorno, seu funcionamento e as formas de conviver com ele," afirma Sâmia, coordenadora do grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no CAPS.

Eurides Pinho explica que a GAM se apresenta como uma ferramenta útil para criar espaços coletivos de discussão sobre o sentido da medicação na vida dos usuários dos CAPS. “A GAM é pensada a partir do uso da tecnologia grupal em um contexto cogestivo (gestão compartilhada), em que muitas vezes os próprios usuários conduzem as discussões em grupo. O trabalho com grupos de GAM nos CAPS é também um instrumento de enfrentamento e superação ao modelo biomédico, que por vezes aparece arraigado nas práticas profissionais, sem valorização e respeito à autonomia e ao protagonismo dos usuários dos serviços de saúde mental,” explica Eurides.

Os pais, inicialmente tímidos, começam a compartilhar suas vivências. O que acontece ali, naquela sala de reuniões, é muito mais profundo: é um movimento de diálogo, acolhimento e compartilhamento sobre a importância da saúde mental e formas de lidar com as demandas apresentadas por crianças e adolescentes que estão em sofrimento psíquico. Essa é a essência da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), uma estratégia inovadora no campo da saúde mental que busca reconhecer as vivências e o conhecimento dos usuários sobre o impacto e o sentido dos medicamentos em suas vidas. A GAM promove a corresponsabilidade entre usuários, profissionais de saúde e familiares, visando aumentar a autonomia dos usuários no tratamento medicamentoso e fortalecer sua capacidade de negociação com as equipes de saúde.

No contexto brasileiro da Reforma Psiquiátrica e da ampliação dos serviços de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), surgiram questionamentos sobre o uso excessivo de medicamentos psicotrópicos. “Às vezes, o tratamento em saúde mental foca muito na prescrição de medicamentos, sem esclarecer motivo da indicação, tempo de uso, os efeitos adversos. Outro problema é a insuficiente oferta de recursos terapêuticos não-medicamentosos. Então são muitos pontos a serem trabalhados desde a ‘hipermedicalização’, tratamentos descontínuos e também o abandono do tratamento,” comenta Sâmia.

A farmacêutica também explica que a GAM é uma abordagem que capacita os usuários a gerenciar seu tratamento de forma autônoma, promovendo o autoconhecimento e o entendimento dos efeitos dos medicamentos. “Queremos que os usuários entendam que o tratamento da saúde mental não se restringe apenas aos medicamentos, e sim que é um componente do cuidado, incluindo boas relações familiares, de amigos, da escola, hobbies, alimentação, atividades físicas, etc. Por isso, é importante que os pais, a escola e nossa equipe estejam presentes no processo e no entendimento da vida desses jovens," enfatiza Sâmia.

O objetivo da GAM é capacitar as pessoas a participarem da decisão da terapêutica medicamentosa, considerando suas experiências, os efeitos em seus corpos e suas condições de vida (trabalho, estudo, vida social, entre outros). No contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, a autonomia é construída através da interação com os outros, compartilhando diferentes perspectivas e experiências. Assim, a Gestão Autônoma da Medicação considera os usuários como protagonistas e corresponsáveis pelo seu tratamento, participando das decisões sobre o uso e a administração dos medicamentos.


Origem

A GAM teve origem no Quebec, Canadá, nos anos 90, através de associações de usuários de psicotrópicos. No Brasil, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), junto com profissionais e usuários de Campinas (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Novo Hamburgo (RS), com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), adaptaram e desenvolveram o Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GGAM) com base nas propostas do Quebec.

Este guia composto por pequenos textos e perguntas sobre a experiência dos usuários, é utilizado coletivamente em cada reunião no CAPS de Aparecida de Goiânia, promovendo a troca de vivências e valorizando as diferentes perspectivas dos membros do grupo.

No CAPS Infantil Alegria, de Aparecida de Goiânia, as reuniões do grupo GAM ocorrem todas as quintas-feiras, às 9 horas. Em torno da mesa, o Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) serve como uma bússola que convida os participantes a refletir e compartilhar suas experiências pessoais com os medicamentos. Através do diálogo proposto pelo GGAM, os usuários ganham confiança para participar ativamente de suas decisões medicamentosas. A conversa não se limita à eficácia dos medicamentos; ela se expande para abarcar dimensões como a inclusão social, o respeito à diversidade e a cidadania.

Maria, uma mãe visivelmente carinhosa, é quem mais compartilha suas vivências com seu filho Jonas, um adolescente com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Jonas comenta que não costuma falar sobre seu transtorno com os amigos da escola e nem que toma medicamentos. Aparentemente tímido, ele já teve problemas na escola, mas é participativo nas atividades do CAPS demonstrando forte interesse em melhorar.

Atenta às necessidades de seu filho, Maria decidiu transferi-lo para uma nova escola, buscando um ambiente mais acolhedor. Ela conta que, desde que começaram as reuniões do GAM e atendimento no CAPS, houve uma transformação notável em Jonas. Ele voltou a praticar esportes, melhorou o desempenho nas aulas e está visivelmente mais feliz. “Antes ele usava roupas largas e evitava até falar com as pessoas. Agora ele até mudou o penteado, usa outras roupas. Não se esconde mais”, compartilha Maria, com orgulho e emoção.

Outra história compartilhada durante a reunião é a de Mauro, que juntamente da esposa, enfrenta uma situação desafiadora com sua filha Yasmin, cujo diagnóstico ainda não foi fechado pelos médicos psiquiátricos. Atualmente afastada dos estudos, os pais anseiam pelo retorno dela à escola. A incerteza em relação ao diagnóstico deixa Mauro confuso e inseguro, mas ele mantém viva a esperança de encontrar o tratamento adequado para ajudar sua filha a recuperar sua rotina e bem-estar. Ele também revela o quanto as reuniões do GAM têm sido benéficas para ele, oferecendo um espaço onde pode compartilhar suas aflições com outros pais e a equipe de profissionais. "Em casa, tento ser forte, mas aqui é onde posso realmente me abrir sobre o que sinto e sobre as minhas preocupações. Às vezes, me sinto perdido em relação ao que fazer pela Yasmin, mas aqui tenho o apoio de vocês. É muito difícil ver minha filha sofrendo. Eu quero ajudá-la", diz Mauro, com os olhos marejados de emoção.

João vive uma experiência intensa com seu filho adotivo, uma criança com hipótese diagnóstica de TDAH com hiperatividade marcante. Ele conta que, na escola, o menino já foi rotulado de forma pejorativa, preguiçoso e burro pelos professores, o que causa profunda angústia em João. Apesar de sua falta de conhecimento inicial sobre o transtorno, João está empenhado em aprender mais sobre o TDAH, buscando maneiras de ajudar seu filho a controlar os impulsos e se desenvolver socialmente. "Ainda não sei muito sobre esse transtorno, mas meu maior desejo é que meu filho tenha uma vida melhor, que consiga realizar suas atividades, estudar e, no futuro, trabalhar", compartilha João, com um misto de preocupação e esperança.

Durante a reunião, as farmacêuticas Sâmia e Sônia também apresentaram aos pais um vídeo didático sobre neurotransmissores e o funcionamento dos medicamentos no cérebro. Este recurso ajudou os pais a compreenderem melhor o processo de tratamento.

Eurides Pinho explica que também é importante que os pais compreendam os mecanismos de ação dos medicamentos no corpo do usuário e, inclusive, que reconheçam possíveis reações adversas dos medicamentos porque essa compreensão dos usuários e familiares auxiliam, também, em aspectos da segurança do paciente e comunicação com a equipe de saúde diante de efeitos adversos. Ela também complementa que, no contexto do público infanto-juvenil, a GAM pode explorar recursos lúdicos e games, que aproximam os usuários da temática de forma divertida e interessante. “É imprescindível que os pais sejam envolvidos nos processos de discussão para que atuem ativamente na decisão da medicação junto com profissionais e usuários”, explica.

Para Sâmia Aragão a estratégia GAM permite uma rica troca de vivências e aprendizados: “Essa troca sensibiliza nós, facilitadores, equipe, usuários e familiares quanto à conduta mais assertiva em relação ao uso e até o não uso de medicamentos psiquiátricos. Tudo isso depois que os envolvidos entendem seu papel de corresponsabilidade”, comenta.

Naquela sala do CAPS Infantil Alegria, as fronteiras entre usuários e profissional se dissolvem. Ali, todos se tornam simultaneamente aprendizes e mestres, compartilhando experiências e conhecimentos. Ao término da reunião, os sorrisos de gratidão, os olhares cúmplices, os apertos de mão e abraços entre os pais — João, Mauro, Maria e seu filho Jonas — e as farmacêuticas Sâmia e Sônia são evidências claras de que a busca pelo tratamento da saúde mental vai além do simples uso de medicamentos. Fica evidente que o grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) representa um caminho para a autonomia na saúde mental desses jovens e de suas famílias, onde a transformação acontece, encontro após encontro, dia após dia.


Outras atividades desenvolvidas no CAPS Infantil Alegria por meio da Gestão Autônoma da Medicação (GAM)

Roda de conversa no Setembro Amarelo: “Medicamentos: fator de proteção ou fator de risco? Roda de conversa no Setembro Amarelo: “Medicamentos: fator de proteção ou fator de risco?

Agradecimento

O CRF-GO agradece aos profissionais de saúde do CAPS Infantil Alegria, de Aparecida de Goiânia, Sâmia Cristina Borges Aragão, Sônia da Silva Oliveira Cândido e Eurides Santos Pinho, bem como a toda a equipe do CAPS. Expressa também sua gratidão aos pais e ao jovem que receberam a equipe de Comunicação do CRF-GO e permitiram a realização desta reportagem. Suas contribuições foram essenciais para evidenciar a relevância do trabalho desenvolvido no CAPS, por meio da Gestão Autônoma da Medicação (GAM).

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